sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Quem sou eu pra julgar?!


De volta ao tribunal do júri. Após um ano e qualquer coisa de descanso, lembraram que eu existo.

Há aproximadamente 14 anos sou forçada a cumprir obrigações com o estado, estando sujeita aos rigores da lei em caso de descumprir qualquer determinação que me for passada.

Aos 18 fui convocada para trabalhar como mesária nas eleições. Uma vez (ou duas com o segundo turno) a cada dois anos, não poderia ser tão tão ruim assim. Não, de fato não seria se eu soubesse o que me esperava dez anos depois. Mas na época eu trabalhava em um instituto que realizava pesquisas de boca de urna no dia da eleição, como consequência eu deixava de ganhar um bom dinheiro com meu trabalho remunerado (eu era freelancer) para ganhar um ticket Planvale de “déiz REAL” (ninguém aceitava essa tranqueira!). Isso me deixou profundamente revoltada naquela época. Mas até que me diverti bastante, os outros mesários eram muito bem humorados e conseguíamos fazer piadas com a nossa situação, os eleitores se sentiam tão à vontade que nos levavam bolachinhas e outras guloseimas!  

Após cinco eleições seguidas, finalmente fui liberada. Que felicidade!! Pena que esta felicidade não tenha durado mais do que um mês. Logo recebi uma carta de convocação para ser jurada. Desta vez eu deveria comparecer ao fórum uma vez por mês, e ficar o dia todo (ou até dias, dependendo do caso) à disposição.

Após a leitura da carta me senti lisonjeada! Afinal não é sempre que recebemos uma carta com palavras tão gentis quanto estas:

... Tenho a honra de comunicar que Vossa Senhoria foi sorteado(a) para servir como Jurado(a) deste Egrégio Tribunal, nos dias e horários abaixo, até ser dispensado(a) de acordo com a lei, ficando Vossa Senhoria, POR FORÇA DA LEI, o decorrer do período em que estiver convocado(a), desobrigado(a) de qualquer outra atividade funcional, sem prejuízo de salário e outras vantagens...

Seria maravilhoso matar uns dias de “trampo”... ah.. seria! Se eu fosse funcionária registrada, mas eu continuava sendo freelancer e consequentemente continuei a ter prejuízos deixando de ganhar meu dia de trabalho.

Não preciso nem dizer que isso não me deixou muito contente. Não apenas por estar novamente sendo obrigada a cumprir funções que em tese não deveriam me trazer prejuízos, mas que traziam (ainda trazem), mas também por não me sentir à vontade na função em questão.

Não gosto de julgar ninguém por suas atitudes, nem mesmo aos criminosos. Em algum momento da vida todos fazemos algo que a sociedade julga como ilegal, imoral ou crime. Claro que existem as devidas proporções... crimes dolosos contra a vida não podem ficar impunes. Mas mesmo assim eu preferia não fazer parte disso. Até porque, a corrupção pra mim também é um crime doloso que afeta a vida de muita gente. E nenhuma punição é aplicada rigorosa ou exemplarmente para quem a comete. Talvez porque esteja enraizado na mente do povo brasileiro, que “o bom jeitinho” é levar vantagem em tudo... por isso os pequenos e grandes corruptos são perdoados.

Não sou nada religiosa, mas como estudei em colégio católico sei que Jesus disse algo mais ou menos assim: “Quem nunca pecou ERROU que atire a primeira pedra...”. [atendendo a um pedido, fiz uma pequena alteração nesta frase para não perder nem o amigo, nem a piada... quem?!.. quando?!.. onde?!.. piada?! que piada?! haha... essa ninguém vai entender... se é que alguém se interessa em ler as baboseiras que escrevo]

Não gosto dessa cultura do ódio. Isso me entristece muito. Principalmente do ódio vindo de pessoas que estão muito distantes da realidade da periferia. Das pessoas que não entendem que enquanto elas forem indiferentes a tudo que não pertence ao seu pequeno mundo, as desigualdades sociais aumentarão e com isso o crime se aproximará cada vez mais delas, que estão sendo forçadas a viver atrás das grandes de seus condomínios... Tendo como porta voz um imbecil como o Datena, que alimenta ainda mais esse ódio com suas frases esdrúxulas, tais como: “Tem que ter pena de morte nesse país... bandido tem mais é que morrer mesmo!”.

Apesar de tudo que acabei de mencionar, por outro lado, posso afirmar que participar de julgamentos foi (e por que não dizer que ainda é?) uma experiência muito enriquecedora do ponto de vista social. Passei a ter ainda mais contato com uma realidade que até então era mais conhecida por mim através de tais noticiários sensacionalistas.

Pra mim, ficou ainda mais clara a diferença com que ricos e pobres são tratados. Que a justiça realmente é diferente para quem pode pagar um bom advogado, e pra quem não pode. Disso todos sabemos, não é preciso estar participando do processo pra constatar... mas estar lá torna a coisa muito mais dolorosa. Senti na pele o quanto vidas são desprezadas, o quanto os direitos dos cidadãos não são cumpridos. Teoricamente todos teriam o mesmo direito à defesa. Todos deveriam ser iguais perante a lei. Mas infelizmente não são.

Um exemplo claro: casos de grande repercussão na mídia podem durar até uma semana, mas eu (que só participo de casos da periferia) já julguei casos que duraram meia hora. Já cheguei a ouvir do promotor: “Vamos acabar logo porque todos nós estamos com fome e queremos ir pra casa”. Ninguém se importa com o caso de um “mano” que comprou um revólver na feira do rolo pra dar fim em sua mulher, por ciúme. Pra maioria das pessoas tanto faz, é só mais um caso em meio a tantos outros. Mas quando alguém com um pouco mais de poder aquisitivo comete algum crime, todos ficam indignados. Como aconteceu no caso Nardoni. A classe média se chocou com o caso por ter uma identificação com a família. Até então eles eram como a maioria de nós. Mas muitas crianças são assassinadas na periferia por seus pais, tios, irmãos, etc. E parece que a vida delas não tem o mesmo valor.

Além da experiência de encarar as diferenças sociais, também acho interessante ouvir as histórias. Eu gosto de histórias (e estórias) de crimes. Não é à toa que adoro a série CSI. Então, neste aspecto também foi interessante participar do júri. A narrativa construída por bons promotores/ defensores é fascinante. Por alguns momentos parece até se tratar de ficção. Alguns fatos são simplesmente surreais.

Apesar de não gostar de julgar, com o passar do tempo fui me acostumando, não tem como fugir. E quem tem que pagar por seus crimes deve ser condenado. Mas tenho sorte de ter estado, algumas vezes, em júris que absolveram os réus. Fico feliz quando isso acontece.

Meu primeiro júri foi muito difícil. Ao ser sorteada e sentar naquela cadeira comecei a suar frio, fiquei muito nervosa.

A juíza, após ler o que constava no processo, perguntou ao réu se ele havia cometido tal crime. Ele olhou pra ela e disse com toda força que tinha: “NÃO!”.

Ele não disse mais nada, apenas “não”. Eu olhava para o réu e via em seus olhos inocência e simplicidade... senti sinceridade, não podia acreditar que ele era assassino... mas nunca se sabe, assassinos costumam ser bons atores no tribunal.

Nessa hora eu comecei a ficar ainda mais nervosa.. pensei: “Agora fodeu! O cara diz que é inocente.. Quem sou eu pra julgar?!”.

Pra minha sorte, o próprio promotor pediu a absolvição do réu por falta de provas.

Ele era um coitado que estava no lugar errado, na hora errada. Simples de tudo, era um pedreiro que trabalhava em uma obra na Cidade Tiradentes (Zona Leste de São Paulo). Em uma das festinhas noturnas que aconteciam na obra, houve uma briga e um homem foi encontrado morto em seu alojamento. Lembro até do nome da vítima, era Paulo. O promotor nos mostrou as fotos que estavam no processo (coisa de CSI mesmo!), fotos da vítima baleada no local do crime, laudos do IML, enfim.. coisas que causam um enorme impacto nos jurados.
Paulo teria sido assassinado por um tal de "japonês", que era segurança da obra, e por outro segurança não identificado. A administração da obra forneceu à polícia as fichas dos funcionários que trabalharam na obra naquele período. Na ficha do réu (do qual não lembro o nome), constava que ele era um dos seguranças. Isso bastou pra que ele fosse considerado suspeito. Mas com a morosidade da investigação, o tempo passou, a obra terminou e quando surgiu a intimação o réu já estava longe, acompanhando outra obra, e logo depois voltou pro nordeste para se casar.
Claro que ele não tomou conhecimento da intimação e por esse motivo foi considerado foragido.

Anos depois do ocorrido, o pobre infeliz foi ao Poupatempo tirar a segunda via do RG. Na hora constou a sua situação. De lá ele foi diretamente para cadeira, onde permaneceu por dois anos aguardando o julgamento. Sim, dois anos preso sem nem saber por que.

Segundo o réu, ele nunca foi segurança na obra, sempre foi pedreiro. As provas comprovaram que a empresa era extremamente desorganizada, que outras pessoas também tinham suas fichas cadastradas com funções que nunca exerceram. O próprio "japonês" que, segundo todas as evidências, era realmente culpado, foi julgado e absolvido anos antes.

Na sala secreta, como a promotoria e defensoria tinham a tese comum, ou seja, ambos pediam que o réu fosse absolvido, tivemos que responder apenas a uma pergunta: se nós concordávamos com essa tese. Sendo assim o réu seria absolvido e solto imediatamente. Por seis a um, absolvemos o réu. Quando a juíza leu a sentença, nem o réu, nem seus familiares entenderam os termos... nem mesmo quando ela disse que estaria providenciando o alvará de soltura... a simplicidade dessas pessoas era tanta que precisaram esperar que o defensor explicasse que o homem finalmente seria libertado.

Isso aconteceu logo no meu primeiro júri. Fiquei feliz por ter inocentado o homem. Mas fiquei triste por saber que ele ficou dois anos preso por absolutamente nada. Sem direito a uma defesa decente.

Segunda-feira estarei no fórum da Barra Funda novamente. Pode ser que eu não seja sorteada... pode ser que não haja julgamento... pode ser que o julgamento dure várias horas... pode ser que não dure nada... enfim.. o certo é que mais um cidadão terá seu destino definido por pessoas desconhecidas que muitas vezes fazem um pré julgamento antes mesmo que ele abra a boca para dar seu depoimento...




Fotos: Fabiane Duarte - Personagens de cera do Museu Ricardo Brennand em Recide-PE



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